Esquecida pelas enciclopédias, a artista usou de sua genialidade para registrar a autoria de seus quadros, num tempo em que as obras de arte só alcançavam visibilidade com a assinatura de um pseudônimo masculino
O cinema contribuiu para o conhecimento de duas artistas plásticas Camille Claudel e Frida Kahlo, mas e as outras? As que ficaram condenadas ao anonimato esquecidas pelas enciclopédias e hoje destinadas a ocupar pouco espaço no campo virtual? Clara Peeters , ignorada pela história por séculos, é uma delas.
Pouco se sabe da vida dessa artista (c.1594 – c.1657). Atuou e viveu na Antuérpia na época de ouro do barroco holandês. Não sabemos a que classe social pertencia, se tinha ateliê ou marchands, nem mesmo o número de obras produzidas ─ cálculos aproximados, datam seu trabalho entre 1607 e 1615.
As poucas obras que se conhecem impactam pela precisão de suas abordagens, pela densidade de sua técnica e beleza do resultado. Mesmo assim, foi impedida de assinar seus trabalhos, ação vedada às mulheres, cujas obras só conseguiam certa visibilidade se assinadas com pseudônimo masculino. O próprio fato de estudar a anatomia humana era proibido, julgado imoral, o que reduzia consideravelmente o campo temático abordado pelas artistas.
Mas para quem pintava Clara? A vemos debruçada nos objetos que compõe a mesa de jantar. Pela presença de porcelanas ─ caríssimas─ alcachofras ─ cobiçadas pelo raras ─ e em especial, pela presença dos saleiros de prata ─o sal era usado só pela aristocracia─ pode-se pensar que Clara era de família rica, que pintava para os aristocratas ou para burgueses imitadores da aristocracia.

As pesquisas sobre seu trabalho, ainda poucas, tendem a observar que a temática de Clara influenciará os bodegones, um gênero de pintura adotado por Velazquez anos depois, onde é destacada a presença de objetos domésticos em especial os de cozinha . Estuda-se inclusive a possibilidade de ser ela a pioneira da natureza-morta.
Clara negou-se a adotar um pseudônimo masculino, mas criou uma forma deliciosa de “assinar” seus quadros. Basta observar com atenção para encontrá-la retratada em minúsculas imagens inseridas na estrutura de copos, jarras ou peças de metal. Nos encara, como dizendo o que dizia outra pintora, a italiana, Artemisa Gentileschi ─ Vou te ensinar o que uma mulher é capaz de fazer.


Cuidadosa com seu trabalho, escolhe o tom exato da cerâmica ou do bronze para pintar seu rosto. Discreta, não compromete a obra, mas assegura seu passo para a posteridade. Através da roupa que veste nesses retratinhos, tentamos inserir a pintora numa classe social determinada. Evidentemente não é uma camponesa, mas também não nos parece uma aristocrata. Uma dona de casa burguesa que conhecia o gosto de seus iguais e a eles vendia seus quadros? Pode ser.
A faca de prata com seu nome cinzelado é outra forma de se fazer presente. No século XVII, nos Países Baixos não se usavam os garfos. Comia-se com as mãos. Só as facas completavam os arranjos das mesas. Eram levadas aos banquetes pelos próprios convidados e cada uma delas tinha o nome do dono gravado para assegurar a sua devolução no dia seguinte. No caso das mulheres, as facas eram presente de casamento, o que pode indicar que Clara estava casada no período em que pintou o quadro.

Clara Peeters sabia de seu valor como artista? Sem dúvida. Esses detalhes, tão sutis quanto geniais, o constatam.
Restam poucos documentos das vendas de seus quadros . Um em especial chama a atenção. Um colecionador de Bruxelas pede que lhe enviem um quadro de Clara Peeters. Quando recebe a obra de um imitador a manda de volta indignado. Felipe II, da Espanha, o monarca mais poderoso do século, lhe compra dois quadros que hoje estão no Museu do Prado. Sua filha, Isabel Clara Eugênia, soberana dos Países Baixos, recomenda sua obra.

No quadro acima, podemos ver o cuidado com que Peeters segue os conselhos publicados em livros para o que era considerado na época “o bom servir”. Dobras perfeitas das toalhas de mesa e dos guardanapos, a presença de frutas de varias estações, assim como doces de marzipã e pães só acessíveis à aristocracia. Pode nos parecer um quadro entulhado e déjà vu, mas o tema é novo, a composição e abordagem também o são. Não se pintavam objetos cotidianos, flores e frutas isolados de um contexto onde o ser humano estivesse presente. Esses temas eram deixados à responsabilidade dos cientistas e pesquisadores da natureza. Salvo novas descobertas, coube à Clara Peeters a criação de uma nova temática na história da arte, o da natureza-morta.
Em 2017, o Museu do Prado fez a primeira exposição individual de uma artista mulher. Foram quinze naturezas-mortas de Clara Peeters.
Quem não foi à exposição, poderá ter o prazer de ver as imagens de seus quadros na internet. Senti-la tão perto, dissimulada entre queijos, porcelanas, cristais, tortas, alcachofras e peixes, na distância temporal de 400 anos.
A mostra foi inaugurada com a conferência de Alejandro Vergara, Chefe de Conservação da Pintura Flamenga do Museu Nacional do Prado. As conferências publicadas por na ocasião são um excelente apoio para o estudo da obra de Clara Peeters.
Nos últimos 500 anos, nós, as mulheres, pintamos, desenhamos, esculpimos nas sombras. É bem-vindo, nesse sentido, o livro “Las 400 mujeres artistas”, da editora Pahidon, publicado em inglês em 1995 e só agora traduzido para o espanhol. Não estão todas lá, mas já é algo. A mais antiga das pintoras é a bolonhesa Properzia de Rossi e a mais nova Tashaballa Self, nascida no Harlem, Nova York. Estão também as que foram eclipsadas por seus companheiros como a fotógrafa Dora Maar (amante de Pablo Picasso), Camile Claudel (amante de Rodin) Lee Krasner (de Jackson Pollock) Eliane De Kooning (mulher de De Kooning). Para conhecer Lee Krasner vale a pena assistir ao excelente filme “Pollock”, com Ed Harris e Marcia Gay Harden no papel de Lee Krasner.
Eu paro por aqui, esperando que encontres Clara Peeters. depois de ter percorrido cada uma de suas obras e sucumbido à surpresa de encontrá-la face a face dizendo-te : “Vem que te ensino o que uma mulher é capaz de fazer”.

Beatriz Rota-Rossi é artista plástica, professora de História da Arte, Estética da Comunicação e Cultura Contemporânea. Autora do livro “Da Gravura ao Grafite- Biografia de Alex Vallauri” editora Olhares , entre outros.